O perdão, quando bem compreendido, é um instrumento de cura. Frequentemente ficamos doentes porque não perdoamos e o rancor e a cólera nos corroem o fígado e os rins. A questão é como manter juntos o perdão e a justiça, o olho da verdade e o olho da misericórdia.
Creio que
não devemos perdoar muito rápido. É necessário, antes de perdoarmos, que
expressemos o sofrimento pelo que nos foi feito e a isso chamo justiça. O
sinal-da-cruz, tal como era feito nos doze primeiros séculos de nossa era,
expressava bem esse sentimento. Começava-se por uma linha vertical, da testa ao
peito, em seguida levava-se a mão ao ombro direito e depois ao esquerdo
(atualmente faz-se o contrário), simbolizando a passagem da justiça para a
misericórdia. Começando sempre pela justiça, exigindo que fosse reconhecido o
mal que foi feito, o inaceitável de certas situações e de certas violências.
Portanto, o pedido de justiça é essencial. Mas é essencial, também, ir além da
justiça, em direção à misericórdia, em direção ao perdão, em direção ao lado
que é o lado do coração.
O que é o
perdão? O perdão é não aprisionar o outro nas consequências negativas de seus
atos. É não nos aprisionarmos ou aprisionarmos o outro no carma. O perdão é a
própria condição para que nossa vida continue a ser vivível. Se não perdoarmos
uns aos outros, a vida vai se tornar impossível de ser vivida.
Como fazer
para que este perdão se torne algo verdadeiro? Platão dizia: “Aquele que tudo compreende, tudo perdoa”. Aquele que
se conhece a si mesmo, com suas ambiguidades, pode compreender o outro em suas
sombras. Portanto, inicialmente, o perdão pode ser uma questão de inteligência,
de compreensão. Perdoar você significa que eu o compreendo, mas não quer dizer
que o que você fez é bom. Compreendo que
você é um ser humano, que é capaz de me enganar como eu próprio faria se,
provavelmente, estivesse nas mesmas condições.
A atitude
de Cristo aos que queriam lapidar a mulher adúltera é: “Aquele que estiver sem
pecado atire a primeira pedra”. Lembrem-se como aos poucos todos se retiram, do
mais velho ao mais jovem. Nesse caso Jesus se serve da Sagrada Escritura, não
para mostrar aos outros como eles são pecadores, mas para fazê-la de espelho
onde eles podem ver suas fraquezas, suas falhas e compreender as dos outros,
não os aprisionando nas consequências negativas de seus atos.
Além de
perdoar com a cabeça é preciso perdoar com o coração e, vocês sabem, o corpo é
o último que perdoa. Se alguém lhes fez mal, se lhes causou sofrimento, vocês
podem tê-lo perdoado com a “cabeça”, tê-lo compreendido com o coração, pensar
que o passado passou. Entretanto, quando essa pessoa se aproxima, seu corpo se
crispa e se enrijece mostrando bem que ele ainda não perdoou, que muitas
memórias estão ainda bem guardadas.
Creio que é
verdadeiramente uma graça quando nos encontramos perto de alguém que nos tenha
feito mal e sentimos nosso corpo calmo, nosso coração límpido. Podemos dizer
que, verdadeiramente, estamos curados. Por isso, creio que o perdão é uma
prática de cura.
No Pai-nosso se diz: Perdoai-nos do mesmo modo como
perdoamos. Como se o dom da vida só pudesse circular em nós dependendo de nossa
capacidade de perdão. Se não perdoamos ficamos prisioneiros, bloqueados em uma
situação, em um rancor, e a vida não pode circular.
Perdoar não é fácil.
Quando eu
era jovem padre e morava no interior da França, todos os domingos levava uma
senhora paralítica à missa. Ela era portadora de esclerose em placas. Um dia
contou-me do ódio que nutria pela mãe porque a tinha impedido de casar-se com o
homem que amava, e, apesar disso, passara a vida inteira cuidando da mãe,
ocupando-se dela. Apesar de exteriormente comportar-se como uma mulher
respeitável e admirável, dizia-me que em seu interior só havia raiva. A dureza
de seu coração impregnara seu corpo, transformando-o em corpo rígido e
paralisado. Assim, as doenças psicossomáticas têm, às vezes, uma origem
espiritual.
Disse a
esta senhora: “Já que você é cristã pode perdoar sua mãe”. Tornou-se
encolerizada e, com uma raiva muito densa e muito íntima, respondeu-me: “Não,
não, jamais a perdoarei. Minha mãe impediu-me de viver, o que sinto por ela é
um veneno que levarei ao túmulo”. Neste momento compreendi o meu erro e lhe
disse: “Você tem razão. O que você viveu é imperdoável. Você não pode perdoar
quem a impediu de viver. Mas pense, creia, o Cristo que existe em você pode
perdoá-la”. Atualmente eu lhe diria: “O ego não pode perdoar: Não se deve
tentar perdoar com o ego. Entretanto, talvez o self possa perdoar. Talvez haja
dentro de nós uma dimensão maior que nós mesmos, que pode compreender e
perdoar”. Passaram-se cinco longos minutos. Em dado momento vi uma lágrima
correr pela face daquela senhora. Ela chorou, chorou muito. Levantou-se da
cadeira de rodas e saiu andando de seu quarto. Há mais de quarenta anos não
chorava, há mais de dez anos não andava. Esse é o milagre do perdão.
Muitas
vezes, está acima de nossas forças perdoarmos a partir de nosso pequeno ego. Se
disséssemos “eu te perdoo”, seríamos hipócritas, pois nosso corpo e nosso
coração não conseguem perdoar. Porém, podemos abrir-nos a uma dimensão mais
vasta que nós mesmos e então o perdão pode chegar.
O perdão não é humano, é um ato
divino. Quando Jesus perdoa, seja a mulher adúltera, seja Miriam de Magdala,
seja um “colaborador” como Zaqueu, os fariseus que o cercam se perguntam: “Quem
é este homem que perdoa? Pois só Deus pode perdoar”.
Assim, é
preciso lembrar que, cada vez que perdoamos depois de termos pedido justiça,
acordamos para uma dimensão divina de nós mesmos. O perdão é um exercício de
divinização onde o humano se torna divino. Continuando humano, temos que
reclamar justiça e, quando for possível, dizer o que foi mau ou destrutivo para
nós e pedir uma reparação. Também somos capazes de misericórdia e de perdão.
Portanto, é preciso que mantenhamos juntas a justiça e a misericórdia. São dois
olhos, às vezes, estrábicos. Podemos esquecer a justiça e nosso perdão ser
superficial, podemos esquecer o perdão e partimos para uma justiça
inquisitorial.
Jean Yves
Leloup