Sou uma
criança. Apesar dos meus pelos no corpo, da minha barba aparente, dos meus seios
crescidos, sou uma criança. Ninguém nota isso porque disfarço bem. Trabalho,
menstruo, dirijo carros, tenho filhos, jogo bola e tomo cerveja, falo coisas
inteligentes, ando de lá pra cá sem pedir autorização...
Às vezes,
até eu esqueço disso. Quando sou fechado por alguém no trânsito e lanço um
palavrão cabeludo, às vezes até me surpreendo: nossa, por que ele fez isso
comigo? Lembro-me dos tapas que recebia dos meninos grandes na escola, e eu não
podia reagir. Mas agora posso: vá tomar no ...! Lembro-me quando minhas amigas
riram da finura das minhas pernas à mostra sob a saia e das espinhas que
teimavam em florescer em meu rosto... queria me enfiar embaixo do tapete. Sinto
que me agridem de graça...
Continuo
sendo uma criança. Minha mãe, hoje, vem me dizer como educar meus filhos,
igualzinho quando ela interferia nas minhas lições, nos meus namorados, nas
minhas roupas. E eu já faço a mesma coisa com meus filhos. Vivo interferindo na
vida deles. Mas todo mundo diz que mãe tem que educar. Pai tem que educar. E não
é isso que é educar? Sei lá... como uma criança pode saber?
Quero
conquistar muitas coisas. Vou atrás dos meus objetivos: um carro, uma casa, um
curso, uma obra que criei, um livro que escrevi, um caminho espiritual que
segui. Quero um cara que me dê segurança, uma mulher que me dê carinho. E daí
posso mostrar pros primos: tá vendo, eu consegui. Posso mostrar para meu irmão:
vou correndo, como quando ganhei um brinquedo novo e mostro a ele, todo gabola.
É meu! E saio correndo com o brinquedo embaixo do braço. Fiz isso com a bola que
ganhei, com a boneca, com o carro zero, com o namorado novo e com o emprego de
gerente que consegui, passando por cima de tantos outros babacas. Não vou deixar
eles brincarem com o meu brinquedo.
Mas parece
que ninguém tá nem aí comigo. Meu marido nem me nota. Não quer brincar comigo,
nem fazer carinho. Minha esposa só pensa em cuidar dos filhos. E cuidar, pra ela
é só dar bronca. Não dá pra brincar assim com gente enfezada. Então, eu bato o
pé. Eu choro, finjo que vou embora, arrumo um caso, só pra ser notado.
Engraçado, só acho namorado e namorada igual a mim. Uma criança que bate o
pé.
Por que
será? Porque será que quero ser notado pelos outros? Porque quero que um homem
ou mulher me dê carinho e segurança? Porque ganho dinheiro, aprendo coisas,
caso, crio filhos, compro casa e carros, quero ser importante? Para
quem?
Nossa...
esqueci do papai. Esqueci da mamãe... Quantas vezes eu quis ter o papai ao meu
lado, nas minhas conquistas e ele não esteve. Quantas vezes quis ser pega no
colo pela minha mãe quando eu chorava e ela, simplesmente, gritou: vá se arrumar
pra jantar! E logo, viu! Eles não sabem que tudo o que eu estudei foi pra eles.
Pra eles verem que eu sou alguém, que eu também sei, que eu também sou bacana!
Eles não sabem que construí minha vida querendo agradá-los. Mesmo quando os
xinguei, fiquei sem falar com eles, chamei-os de quadrados e idiotas... Mesmo
quando não conheci meus pais... tudo o que fiz foi por eles, para ser visto e
amado, como uma simples criança quer e merece.
Mas eu não
mereci. E por isso, acho que sou errada. Sou errado. Não presto. Papai nunca
gostou de mim. Mamãe também não. Só cobram que eu seja a criança certinha, e por
mais que eu tente, não consigo.
Deixa eu
olhar bem pra cara da mamãe e do papai. Vou falar pra eles o quanto eles fizeram
de errado. Abandonaram-me, não me apoiaram, criaram-me de um jeito errado,
desleixado, sem amor. Eles não me amaram nunca! Mas, espera lá! Estou vendo nos
olhos de papai uma criança carente e mimada. Como eu. Ele também queria que o
vovô olhasse pra ele. Mamãe, seca e dura, nunca foi pega no colo pela vovó. Ela
também está com birra. O que adianta eu querer ser reconhecida pelo papai e pela
mamãe, se eles estão olhando para trás, para vovô e vovó! Eles não me enxergam!
E vovó e vovô também estão em busca do amor dos pais deles... Nossa, quanta
coisa aconteceu no meu passado familiar: separações, abortos, homicídios,
imigração, fugas, abandonos, encontros, amores não correspondidos, lares
desfeitos... Papai e mamãe carregam tudo isso nas costas. Crianças perdidas e
errantes num campo devastado pela solidão, pobreza e guerra, em busca de serem
reconhecidos. E eu também estava carregando... Mas essa mala não é minha. Nossa,
como sou criança!
Ôpa, acho
que estou crescendo. Não quero mais ser reconhecido pelo papai e pela mamãe.
Eles parecem como adultos, falam como adultos, têm muita experiência e feitos,
mas... são crianças como eu. Como eles podem me reconhecer se têm emoções tão
infantis? O que adianta eu querer parceiro para me amparar e me reconhecer,
ficar no lugar do papai e mamãe? Vou encontrar outra criança, como encontrei até
agora. Meninos e meninas que mal saíram das fraldas... O que adianta querer
mostrar meus brinquedos novos, minhas conquistas, minhas habilidades
profissionais, minha espiritualidade para papai e mamãe, se eles não estão nem
aí? Eles querem amor, o amor que não perceberam no vovô e vovó, e eu só estou
cobrando amor que eu não recebi. Esta história vai longe. Muito longe. Mas eu
não quero mais isso. Eu tenho filhos e terei netos. E quero que eles estejam
satisfeitos com a vida deles, do jeito que eles são. Não quero mais ser
reconhecido. Deixa pra lá. Papai e mamãe me deram a vida, e isso é o suficiente.
Já foi muito. E eu me reconheço. Mesmo com minhas mágoas, com minhas dores, sou
um cara forte, cheio de amor para dar. Sou uma mulher forte e capaz, do jeito
que sou. Eles não podem me reconhecer, mas eu posso reconhecer o que recebi
deles. Mesmo que tenha sido só a vida. Só a vida?... Só?
E posso
reconhecer muitas coisas nos meus filhos. E posso falar o que eles têm de bom,
porque eles querem ouvir - estão esperando por isso. Posso fazer a minha parte,
o meu trabalho, as minhas relações novas e livres, adultas, e ser feliz por mim
mesmo. A minha felicidade não depende de ser reconhecido por papai ou mamãe. Eu
posso reconhecer muito nos meus clientes, amigos, namorado, mulher, professores.
Todos eles são crianças, como eu, em busca do amor de papai e de mamãe. Freud
explica. Mas eu faço a minha parte. Assim eu sou feliz. Porque eu me reconheço
como sou. Uma criança consciente. Agora, dá licença, que tá ventando e vou
empinar pipa...
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